Deite-se como uma travesti (Lv 18:22 e 20:13)

Allie Terassi
7 min readSep 30, 2023

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Texto originalmente publicado pela Revista BenDIGA (Coletivo Esperançar e Fundo Positivo) em agosto de 2023.

“Não se deitarás com um homem como se fosse mulher, é abominação” (Lv 18:22)

“Se também um homem tiver relações com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles.” (Lv 20:13)

“Ferrou.” Foi a primeira coisa que eu pensei quando fui convidada a escrever um texto sobre os tão temidos versículos de Levítico. Honestamente, sempre que leio esses textos, a reação imediata é de calafrios. Não é intuitivo pensar que o excerto esteja dizendo uma outra coisa segundo o seu contexto, nem mesmo imaginar que é possível agradar a Deus fazendo o que o texto aparenta condenar.

Outra coisa que sinto, logo depois dos calafrios, é dúvida (se é que é possível sentir dúvida). Principalmente porque em toda a Bíblia hebraica não existe um único versículo que trate de relações entre duas mulheres, e eu, enquanto travesti, sequer encontro corpos semelhantes ao meu em todas as Escrituras. Deus estaria condenando apenas a relação entre dois homens? Não faria sentido, certo? Que tipo de relação? Por que ela seria condenável? E ainda, por que seria “abominável” diante de Deus?

A “profecia” rogada sobre essas pessoas diz que elas serão mortas – e o seu sangue cairá sobre elas (Lv. 20:13). Francamente, olhando de forma descuidada para esses trechos eles realmente parecem o que parecem, não é? Uma pessoa LGBTI+ é morta a cada 32 horas no Brasil e, pelo que dizem as más línguas, tenho apenas 35 anos de expectativa de vida. Seriam essas as boas novas do Evangelho para os corpos como o meu?

Bom, o que eu sinto lendo esses textos pouco importa para a teologia cisheteropatriarcal. Então, que façamos uma nova leitura, fria e cuidadosa, sem medos e calafrios. Antes disso, é preciso entender por que raios Levítico está na Bíblia, certo? Segundo Nancy Cardoso, o livro “se ocupa com a ordenação e a integridade dos corpos: o corpo pessoal, o corpo social e o corpo da terra”, apesar de ser utilizado para compor uma proposta teológica “sem corpo, contra o corpo e apesar do corpo” (PEREIRA, N. C.; BOEHLER, G., 2013). Dessa forma, o autor estaria preocupado em detalhar quais seriam as práticas civis, culturais, comunitárias, cerimoniais e ritualísticas (e por que não sexuais?) – naquela localização espaço-temporal – que trariam o ser humano para mais próximo de seu próprio corpo.

É por isso que, junto com os temidos textos de terror, em Levítico ainda existem outros diversos trechos com recomendações tão estranhas quanto, dizendo para o povo não utilizar roupas com tecidos diferentes ou não plantar duas espécies diferentes de semente em uma mesma lavoura (19:19). Eles eram destinados a um contexto imerso em uma série de circunstâncias específicas àquele povo. Mas então, qual era a intenção do autor ao deixar Lv 18:22 e 20:13 para o povo? De que forma esse texto deve ser lido? Ainda faz sentido lê-lo?

O livro de Levítico utiliza da pena de morte para diversos tipos de “pecados” ou “impurezas” cometidas contra o próprio corpo ou o corpo do outro, mas acredito que não tenhamos que nos atentar a esse ponto específico tão exaustivamente. O sacrifício feito por Jesus foi suficiente para expiar toda condenação contra nós. No entanto, a questão que martelava meus pensamentos é o porquê tais atos seriam condenáveis. A questão do adultério, por exemplo, também passível por pena de morte em Levítico, é detalhada pelo teólogo Helminiak como sendo intepretada enquanto uma ofensa contra a propriedade (da mulher pelo homem). Deitar com a mulher de outro homem seria parecido com um “roubo”, e traria diversas implicações financeiras, sociais e comunitárias naquela sociedade (HELMINIAK, D. 1988).

Nos dois trechos em Levítico utilizados para condenar a homossexualidade, a expressão “como se fosse mulher” se repete. E ao contrário do que se pensa e se diz por aí, a torto e direito, a expressão em hebraico “mishk’vei ishah” (deitar como se fosse mulher, ou “na cama” de mulher) não diz respeito a identidade gay ou bissexual (muito menos trans ou lésbica, né?). Até porque, não havia na época uma compreensão política e social desses sujeitos, para que fossem “condenados” por suas existências, e sequer havia um entendimento do que seria uma “homoafetividade” e de como os afetos moldam as vivências comunitárias e constroem partes significativas da identidade de cada um. Isso veio muito mais tarde, do meio para o final do século XX, no contexto das movimentações políticas por Liberdade Sexual nos EUA, junto com o surto epidêmico de HIV/Aids que infelizmente atingiu grande parte dessa população na época e, coincidentemente, foi no mesmo período que as compreensões dos textos de terror enquanto condenatórios para essas pessoas começaram a ser divulgadas e publicizadas.

Mas então, o que literalmente diz o texto? A expressão “mishk’vei ishah” diz respeito, única e exclusivamente, ao sexo anal penetrativo entre dois homens, “como se fosse” com mulher. Nesse caso há uma distinção cultural feita entre o sexo vaginal e o sexo anal, enquanto um é o “natural, típico” e o outro é “anti-natural, atípico”. Quaisquer outros tipos de relações homoeróticas não estão inclusas na interpretação literal do texto. Mas então, o que se pode concluir? Apenas o sexo anal é proibido? Por que o sexo anal? E por que não pode? Realmente não pode?

Bom, para responder essa pergunta, é importante lembrar que, novamente, estamos há dezenas de séculos de diferença do texto (historiadores dizem que o livro foi escrito no século XV a.C.). E é importante lembrar que nem Levítico, nem qualquer outro livro da Bíblia faz menção à concepção moderna de homossexualidade ou bissexualidade. As relações homoeróticas que existiam enquanto fatos sociais (com expressão social e de forma generalizada) no tempo de Levítico não aconteciam em contextos amorosos ou românticos e nem de igualdade entre as duas (ou mais) pessoas (em sua maioria, eram escravizados junto com seus senhores, adolescentes com homens adultos, filhos e sobrinhos com seus pais e tios, etc).

Além disso, o texto faz uma distinção semântica entre o homem (termo “ish”: homem adulto, cidadão, com direitos políticos) e o macho (termo “zacar”). Uma tradução literal seria algo como “Não se deitarás um homem com macho como se fosse mulher (ishah)”. Dessa forma, fica nítida a disparidade (hierárquica, política, social) entre as duas pessoas (homem e macho) na relação sexual penetrativa que se estabeleceu.

O fato do excerto focar especificamente no sexo penetrativo entre homens, não mencionando outros tipos de interações sexuais homoeróticas, muito menos entre mulheres, diz respeito a esse contexto em que foi escrito. Nenhuma parte da Bíblia responde a pergunta: “tá, mas e se homens (ou mulheres) tivessem relações sexuais (das mais diversas formas) entre si em um contexto responsável, afetivo, ético, saudável… ainda seria pecado?” O texto bíblico não previu, ou não se preocupou, em responder isso, talvez porque a resposta deveria ser óbvia.

Nesse caso, proponho o exercício de romper com a lógica cisheteronormativa e binária das interações sexo-afetivas, para que o texto seja corporificado e ganhe materialidade aqui, no Brasil, em São Paulo, no meu corpo – de travesti. E também aí, onde quer que você esteja e de onde quer que você venha.

Desde que aprendi que a Bíblia é um conjunto de relatos de diversos corpos em sua relação e experiência com Deus – que também tem corpo – ela ficou muito mais palpável. Principalmente porque isso me fez perceber que também cabia Deus em mim, nesses 1,73m de altura, com mais ou menos 64 kg de massa corporal, sob um regime diário de 12mg de ciproterona, 2,4mg de estradiol para terapia hormonal e 20mg de escitalopram para ansiedade. Deus cabe aqui, entre meus artesanatos, e é ele quem pulsa nas minhas veias e artérias e se mistura com os fármacos dentro de mim. É ele mesmo quem alarga meus quadris, aumenta meus seios, afina minha voz. É Deus quem toca no barro do meu corpo e me molda novamente, desse jeito, nem homem, nem mulher: travesti.

E é por isso que quando eu – eu mesma, euzinha – leio os textos de terror em Levítico, penso que nunca me deitaria com alguém “como se fosse…”, afinal de contas, se o afeto acontece, só acontece como é. E então deito como é, e como sou – seja com ela, com ele, com elu, ou eles. E descubro Deus no roçar dos corpos, no suor que escorre do canto do pescoço, no gemido que chama pelo seu santo nome. E desse lugar, recomendo-lhes: deite-se como uma travesti.

Revista BenDIGA na íntegra no perfil do coletivo @esperancar no Instragam.

NOTAS

1. De acordo com o teólogo queer e biblista Bob Luiz Botelho (2021), as principais traduções bíblicas que traziam termos relacionados à homossexualidade só começaram a ser globalmente divulgadas a partir de 1987, no auge da epidemia de HIV/Aids.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

PEREIRA, N. C.; BOEHLER, G; Andre Musskopf. Corpora Fluida: contaminación y peligro en el imaginario religioso. Lectura crítico-antropológica del Levítico bíblico. In: Lima, Silvia Regina; Boehler, Genilma; Lars Bedurke. (Org.). Teorías queer y teologias: estar en otro lugar. 1ed San Jose: DEI Departamento Ecumenico de Investigacion, 2013, p. 175–190.

HELMINIAK, D. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade? Curitiba: Edições GLS, 1998, 143 p.

BRITO JR, Valdenor. A Estrela da Redenção. [56] Homossexualidade e Bíblia Hebraica 3 – O sentido literal do Levítico. Disponível em: <https://aestreladaredencao.medium.com>; Acesso em 12 de junho de 2023.

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Allie Terassi

sou uma falha epistemológica tentando produzir poesia e teologia. e a melhor delas está no outro.