DEUS USA ESTRADIOL: Por uma outra hormônio-êutica

Allie Terassi
8 min readDec 8, 2022

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“Eu levei um susto, não estava preparada. Todo mundo sabe, mas ninguém te avisa.” (Ela sorriu pra mim — Tuyo)

O Nascimento de Vênus - S. Botticelli

Há quase dois meses, iniciei minha terapia hormonal para afirmação de gênero. Todos os dias, desde então, assim que acordo, tomo um comprimido com 100 mg de espironolactona, que atua bloqueando a testosterona na corrente sanguínea. Mesmo assim, quase todos os dias, passo a gillete no meu rosto. Eu escorro cotidianamente pelos ralos da pia, ou fico presa pelo sangue nas lâminas tríplices.

Um dia desses, entre euforias e disforias, coloquei a música “Ela sorriu pra mim” da banda Tuyo para tocar. Ouvi a letra repetidas vezes e eu podia jurar que se tratava de uma declaração afetivo-romântica de um casal apaixonado, e então fui assistir o clipe oficial da canção que abre o EP natalino nomeado “Depois da Festa”. No clipe, a história cantada se inicia com uma personagem que se espreguiça. Provavelmente cansada do ano que se passou, é dezembro, a casa está decorada com enfeites de natal e pisca-pisca. A mesa começa a ser preparada para a ceia, com uma certa pressa.

Um amor assim
Pode ser assim
Quando olhei pra você, num segundo eu sabia
Minha sorte apareceu da noite pro dia

O dia acontece, a refeição acaba, as pessoas se relacionam. A protagonista dessa história vive a festa com certo deslocamento, desconforto, ou algo do tipo. Uma taça quebra. Na medida em que a música se intensifica e os arranjos vão ficando mais elaborados, a garota sai em busca de recursos, objetos, acessórios e organiza uma cabana improvisada com lençóis, livros, almofadas, cadeiras e pisca-piscas. Ela se espreguiça novamente e dança pela casa.

Ela sorriu
Ela sorriu pra mim

Depois de ver o clipe, a canção melodiosa fez mais eco dentro de mim. Fui até o terraço do condomínio e dancei ao som de Tuyo. Fazia cerca de 20º celsius e ventava muito na grande São Paulo. Dancei enquanto eu sentia meu coração acelerar, na dúvida se era por conta dos movimentos rápidos do meu corpo ou por ansiedade generalizada. Lembro que, no desespero ansioso de existir em um corpo deslocado, liguei para uma amiga: “- Amiga, você sabe dizer se posso tomar mais um comprimido de espiro?”. Não podia. Era melhor seguir a receita. A disforia me removia de mim, eu via meu corpo distorcido. Parei de dançar. “- Posso dobrar a dose do ansiolítico pelo menos?”

Dentro de um regime fármaco-pornográfico (Preciado, 2013) — em que se misturam o domínio médico-científico-biologizante com as técnicas de organização semiótica das subjetividades sexuais — confundi meu corpo com as 100 mg de espironolactona e minha sanidade com o escitalopram. Contei tudo para minha terapeuta na última sessão.

“- Allie, já reparou que toda vez que você fala sobre si mesma, você sorri?”. Definitivamente eu não tinha reparado. “ — Acho que ela sorriu para você”.

Apesar do deslocamento e da taça quebrada em plena festa, agora tinha entendido a melodia da canção que começou a tocar dentro de mim. A taquicardia não era ansiedade e nem alta oxigenação sanguínea: era paixão.

No começo dessa semana conversei com a endocrinologista e quase implorei por outro medicamento hormonal. Existir a partir da feminilidade em um corpo como o meu não era inteligível para absolutamente ninguém além de mim mesma. Sim, ela sorriu pra mim, mas só ela.

“- Estradiol hemi-hidratado, em gel com 0,6 mg/g. Passar todas as noites, nos antebraços ou nas panturrilhas.”

Sinto que, na experiência de conhecer essa pessoa que escolhi chamar de Allie e sorrir pra ela nesse processo, descobri Deus como componente inevitável para a construção de quem eu sou. Nele eu vivo, me movo e existo, mas só posso conhecê-lo a partir do que acontece em meu corpo. Então, tirei o remédio da embalagem, e fui procurar um incenso para acender no meu quarto. Gosto muito do cheiro. “Magia feminina”, estava escrito na caixinha do incenso, junto com um “Every prayer is answered…!” Apesar de eu gostar de uma magia bem mais travesti, acendi aquele mesmo. Abri a Bíblia, li meu salmo favorito, o 139. Sei de cor. E coloquei o gel no antebraço.

O movimento dos meus braços enquanto espalham o Oestrogel me hipnotiza. É uma dança. Ainda me pego admirando a tatuagem do meu braço esquerdo, enquanto esfrego até secar. É uma representação de Afrodite, na obra “O Nascimento de Vênus”. Gosto muito dessa pintura porque me lembro de quando escrevi um poema com esse nome, em que trato a mim mesma — o eu-lírico — pelos pronomes femininos, mesmo sem me entender enquanto pessoa trans na época. Enquanto lembrava, o gel secava no meu braço. Medicamento de uso adulto, via transdérmica. Absorvido pela pele, invisível, correndo pelas minhas veias e artérias sanguíneas. Meu corpo correndo pelo terraço do condomínio, ou pelos átrios do que eu insisto em chamar de Deus, que sorria pra mim, invisível. Ela sorriu pra mim. A música repetia o refrão mais uma vez.

“me perdi na divindade de minha órbita
fiz-me cética, crendo em mim
olhei-me no espelho e vi a Ti
e descobri que o Deus que é belo
achou-me
e fez-se ônus sob céus serenos
para que eu fosse eu,
vênus”
- Allie Terassi (2017)

Eu não assinei esse poema com esse nome quando o escrevi. A Allie nasceu um pouco depois de Vênus. Continuo cética, e encontrando Deus no espelho, mas agora em um outro corpo que digo que é meu. Será que é outro? Será que é o mesmo? Talvez pessoas trans sejam como barcos-de-teseu. Mas sei que vejo Deus acontecendo em mim, o encontro no cotidiano da corporalidade que me constrói, e que se destrói na artesania dos retalhos, nas gilletes batendo nas paredes da pia, nos 100 mg de espironolactona antes do café da manhã. Deus escorre pelo ralo junto comigo, me desembaraça, me arrebata, me costura de novo. Deus passa estradiol todas as noites antes de dormir e, ao mesmo tempo, é Ela mesma quem entra pela minha pele, que corre pelo meu sangue, que transforma meu corpo.

Apesar disso, Deus é medicamento vendido somente com prescrição. Não serve para o meu corpo, nunca me dariam a receita, muito menos o atestado da consulta. Tive que forjá-la a partir da sua transição, para que ela fosse encontrada em qualquer lugar. Eu precisava achar Deus enquanto eu passo hormônio no meu braço, porque essa é parte litúrgica de quem eu sou. Se eu não achá-la ali, vou encontrá-la onde? Nas igrejas falam dela de uma forma masculina demais, cisgênera demais, hétero demais, branca demais. Não entendo como uma figura assim se identificaria comigo. Precisei transicionar.

Transicionar a teologia é a única forma de enxergar meu corpo para além das categorias de macho e fêmea, imagens-e-semelhanças, de Gênesis. Se me revelo à imago Dei, ela definitivamente não é macho, muito menos fêmea. Deus pode ser travesti, siliconada ou não, hormonizada ou não, redesignada ou não. Deus, aqui, é o nome que dou ao campo de possibilidades que se encontram no exercício persistente de transicionar o fazer teológico para descobrir Jesus no caminho da vida, lembrando de sua morte e de sua ressurreição. Estamos muito cegos para encontrá-lo a cada passo apressado.

Esses dias abri a Bíblia em Lucas 24, na história sobre duas pessoas que caminhavam para um povoado que ficava consideravelmente distante de Jerusalém, a 11 Km — andando — e que se chamava Emáus. Eu já tinha lido esse texto muitas vezes. Nas minhas anotações, para além dos marcadores coloridos, estava escrito que “emáus” significava “águas termas”. Aquelas duas pessoas estavam jogando conversa fora, comentando os acontecimentos recentes de Jerusalém, enquanto iam para um lugar distante e confortável.

No caminho, uma terceira pessoa aparece e, intrometidamente, pergunta sobre o que eles conversavam. “- Você deve ser o único que não tá sabendo dos últimos babados” (v. 18)disse um deles, ou coisa parecida, e então eles começaram a contar tudo para o viajante: sobre Jesus, suas obras diante de Deus e do povo e de como tinha sido levado pelos chefes dos sacerdotes para ser crucificado, fazia pouco mais de três dias. Contaram ainda que as amigas deles tinham visto o túmulo vazio, onde Jesus tinha sido enterrado. Tinham visto anjo e tudo. Tudo muito estranho.

Nesse momento, o terceiro viajante começou a explicar as escrituras, desde os primeiros profetas, mostrando a chave hermenêutica de Jesus em toda parte, em toda a história, e de como tudo apontava para a vida de Cristo e para o mistério da sua encarnação. O corpo é horizonte indispensável para a construção de uma teologia, porque Cristo só pode fazer sentido no cotidiano dos homens através de um corpo.

Os olhos deles ainda custavam a reconhecer que o homem que diligentemente explicava as escrituras, e que fazia o coração deles queimar conforme ouviam (v. 25), era o próprio Cristo. Estavam cegos demais para encontrá-lo a cada passo apressado. Quando anoiteceu, Jesus pegou o pão, deu graças, o partiu e deu a eles— e foi nesse momento, no partir do pão, que Deus-em-Corpo foi reconhecido e desapareceu diante dos seus olhos. Eles encontraram Deus no caminho, no cotidiano, contando fofocas, aprendendo sobre coisas novas, comendo, bebendo, sentindo o coração queimar — sem saber que se tratava de uma divindade. Quando Jesus foi reconhecido, desapareceu — não fazia mais sentido. Era preciso reconhecê-lo no cotidiano e no chão da vida: Um Deus em tudo e em todos.

Quando olhei pra você, num segundo eu sabia
Minha sorte apareceu da noite pro dia
Eu levei um susto, não estava preparada
Todo mundo sabe, mas ninguém te avisa

Eu não estava preparada pra ver Deus pulsando da dança que meus braços faziam enquanto eu também via, da noite pro dia, Deus entrando no meu corpo, correndo pelo meu sangue, alargando meu quadril, afinando minha voz, afinando meu rosto, aumentando o tamanho dos seios. Levei um susto, olhei no espelho e num segundo eu sabia: a Allie estava cheia de Deus. Deus em toda a parte. Ninguém tinha me avisado o quão assustador é perceber o divino no cotidiano. E o quão revolucionário é experienciar uma transição não só de gênero, mas teológica, doxológica e transcendental. Sorri para o espelho, ela sorriu pra mim. E Deus acontecia, através de novas hermenêuticas hormonais — Hormônio-êuticas, hormônio-éticas, éticas hormonais — produzidas pelo meu próprio corpo.

Na última sessão contei para a minha terapeuta sobre minha epifania. Ela disse algo como: “- O mistério da sua fé é o seu corpo.” Mas acho que vou ter que discordar. O mistério da minha fé é a fricção que meu corpo faz com Deus e com os outros corpos. Não existe outra coisa mais divina que o cotidiano dos corpos e seus afetos.

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Allie Terassi

sou uma falha epistemológica tentando produzir poesia e teologia. e a melhor delas está no outro.